Leia o texto de Kathrin Rosenfield sobre a obra de François Jullien.
É um fato curioso que os processos mais importantes para a nossa felicidade – por exemplo, o inevitável esfriar das relações amorosas com pessoas e coisas, o desgastar-se de acontecimentos, palavras e ideias cruciais e, sobretudo, a singela experiência do envelhecer – são as que menos pensamos e as que não recebem destaque no pensamento filosófico do ocidente. O que distingue nosso modo de ver e pensar o mundo do pensamento oriental – eis o tema da palestra “As transformações silenciosas” de François Jullien, no dia 30 de Setembro, no Salão de Atos II da UFRGS.
Vivemos numa cultura cujas formas de expressão tendem a ocultar e negar as transformações sorrateiras, que ocorrem à revelia do controle vigilante da consciência e do cálculo racional. Somos pouco dispostos a notar as quase insensíveis alterações que ameaçam o artifício tipicamente ocidental: a construção de ideias da permanência estável (o Ser), de fatos e individualidades isolados. O ‘eu’ que se concebe como autônomo, repudia os processos que fogem ao seu controle e tende a perder de vista as constelações que contrariam sua vontade e intenção.
O ocidente privilegia a ação e os eventos pontuais, alinhados nos grandes relatos que realçam as continuidades e as rupturas que desenham a linha do tempo histórico. A China, ao contrário, está atenta aos conjuntos mais amplos: são decisivos menos as ações isoladas e os acontecimentos destacados, do que incontáveis elementos que compõem um processo, e os fatores mínimos que já anunciam sua transformação. Vigilante aos detalhes interligados, cujos liames estão em permanente mudança, o pensador oriental observa as correntes e tendências que constituem seu movimento vivo e pulsante; não isola a essência, o Ser e a Verdade, nem separa o ser (divino) da aparência (terrena). Vê o mundo e o cosmos como um único processo, fluxo contínuo em constante transição. Nós ocidentais perguntamos o que é ou está; para os orientais importa antes a leitura dos sinais que anunciam novas possibilidades e as tendências ínfimas que regem as constelações nas quais nos movemos. Técnicas milenares como o I Ching aguçaram o olhar para que capte essas tendências e quem as pratica treina sua percepção (e sua paciência) para estar disposto a inserir-se em possíveis transformações.
Esse olhar é muito diferente do voluntarismo individualista europeu, que acredita na força “proativa” dos indivíduos e no seu poder de determinar e controlar a trajetória dos processos. O pensamento oriental não dá esse destaque ao indivíduo que é antes parte ínfima de processos que o ultrapassam. A ação apenas pode tirar vantagem dos movimentos já em curso, inserindo-se favoravelmente neles. Nada poderia ser mais estranho ao pensamento ocidental, tão propenso a engrandecer a conquista ímpar do sujeito singular: somos recalcitrantes à sabedoria oriental do Tao que celebra o “caminho” traçado por inúmeras forças, que se entrelaçam inextricavelmente.
Mas o livro de Jullien não insiste meramente no contraste entre Oriente e Ocidente. Mostra também a abertura da nossa cultura às outras formas de pensar e ver o mundo. Pela sua vocação de universalidade, nossa cultura começou a fugir da rigidez dos conceitos e dos dogmas, criticou a repetição mecânica das suas tradições empobrecidas, e cultua a abertura de reinventar-se. Apesar das convenções poderosas, há também no ocidente indivíduos e grupos atentas à fluidez da vida – basta lembrar como exemplo a arte de J. G. Rosa, cuja reflexão sobre a ‘matéria vertente’ se pautava no Tao.
Assim, Jullien dedica boa parte de seu ensaio às artes e disciplinas ocidentais que aprimoram a sensibilidade e a sabedoria voltadas para os processos decisivos, embora excessivamente sutis que afetam nossa vida e nossa felicidade. A poesia e o romance preenchem esse papel importante na cultura europeia. Mas eles não são as únicas “máquinas de transformações silenciosas” (65). Também a psicanálise baseia-se na reeducação das formas de ver e sentir, de pensar e viver: não oferece “cura” ingênua, mas ensina ver de outra maneira, a considerar outras possibilidades – possíveis reviravoltas – já inscritas nas constelações que consideramos como infelizes. É esse outro olhar que leva a desistir da repetição compulsiva de sofrimentos fixados por hábitos mentais neuróticos.
Diferente da auto-ajuda que foca a solução de problemas pontuais, a psicanálise nos prepara para o processo “infinito” da existência, que menos evolui (como nós tendemos a pensar) do que “verte” em imperceptíveis reviravoltas: “Para que algo possa se inverter no seu contrário – como, por exemplo, o amor em indiferença, desgosto e ódio – é preciso que ele já contenha esse contrário em si mesmo... a morte está sempre já na vida e caminha nela: eis porque morremos um dia de morte natural. Ou a pulsão de morte, que não é somente o outro de Eros, mas, segundo Freud, a negatividade que se exerce dentro da pulsão sexual, que trabalha nela e impede a plena satisfação” (85). Por mais que avancemos na descoberta de traumas e causas do nosso sofrimento, mais nos treinamos na “perlaboração”: a demanda de compreensão racional começa a ceder a um outro entendimento, a uma “entrega” sutil de quem vê e navega melhor – aproveitando as oportunidades de sair das cadeias causais para a reviravolta.
Nos “curamos” não pelo viés da interpretação e da argumentação (que nos aprisionam na lógica da não-contradição e que detesta, desde Platão, as “correntes contrárias do Euripe”); nos curamos porque o caminho/Tao da análise nos proporciona a experiência de ver como são as coisas: correntes movidas por contracorrentes – nada mais, nada menos. Como o “Clássico da mudança” chinês, que fala do yin e do yang, a psicanálise nos reensina a lógica da contradição: a todo o momento podemos aproveitar as forças contrárias para que se inclinem na direção da sua contra-corrente.
É o momento em que a esperança terapêutica ingênua se verifica – pelo avesso: não temos nada de novo a aprender. Tudo que é relevante, já o sabíamos. Mas é nesse momento que podemos começar a prestar atenção aos processos sutis que viabilizam reversões surpreendentes. Eis a grande diferença que Freud (re)introduziu no pensamento ocidental – desafiando a metafísica voltada para o Ser, a Verdade, a firmeza de determinações que põem fim e limite à fluidez do viver.
Não é dos orientais, mas dos mitos e da poesia grega que Freud imitou os processos fluidos e o pensamento paradoxal. E todos que passaram pela análise ou por terapias afins (sejam elas corporais ou verbais) sabem dar valor às sutis transformações do crescer, envelhecer e amar: são aventuras labirínticas e paradoxais às quais não precisamos assistir passivamente. Podemos cultivar um carinho pelos seus processos sutis e contraditórios, e praticar uma arte mais graciosa de viver, envelhecer e amar.
Não há pensador mais oportuno do que François Jullien para o evento O Mal-estar na Cultura. Pois o objetivo deste evento estendido sobre um período relativamente longo é detectar – e deixar vir à tona – as possibilidades de diálogo entre disciplinas e culturas, ideias e pessoas diferentes. Em vez de encenar novidades espetaculares, propomos aproveitar as afinidades entre conhecimentos, práticas e sabedorias que poderiam nos ajudar a melhor enfrentar as nossas transformações silenciosas.
http://www.malestarnacultura.ufrgs.br/lerdocumento.php?idtitulo=02a137de8543e84be3330256a132ff6b
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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