Mario Vargas Llosa foi aplaudido de pé ao entrar no palco do Fronteiras do Pensamento na noite de 14 de outubro. Com o Salão de Atos da UFRGS totalmente repleto, o Nobel de Literatura 2010 iniciou sua conferência agradecendo o carinho do público do Fronteiras que, segundo as palavras do próprio autor, recebe tão ilustres pensadores e artistas.
O escritor peruano dedicou sua conferência à noção de "cultura", fazendo uma crítica aos rumos dados a esse conceito graças à antropologia, à sociologia e ao pensamento dos intelectuais pós-modernos como Michel Foucault e Jacques Derrida, aos quais fez duras considerações. Para Vargas Llosa, a noção de cultura foi adquirindo diversos significados e matizes ao longo da história: ela já foi inseparável da religião, da
filosofia grega e do direito romano. No Renascimento, a "cultura" era impregnada de literatura e artes; e, com o Iluminismo, ela foi finalmente associada ao conhecimento científico.
A noção de cultura
Apesar dessas variações históricas, Llosa defendeu que "cultura" sempre significou a soma dos fatores e das disciplinas que a constituíam: a reivindicação de novas ideias, valores, conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos, bem como o fomento de novas formas artísticas e campos do saber. A cultura sempre estabeleceu hierarquias sociais entre quem a enriquecia e a fazia progredir e quem a desprezava
ou era excluído por razões sociais e econômicas. “Em uma sociedade, em todas as épocas históricas, havia pessoas cultas e incultas e, entre ambos os extremos, pessoas mais ou menos cultas ou mais ou menos incultas. Essa classificação ficava bastante clara em um mundo onde tudo era regido por um mesmo sistema de valores, critérios culturais e maneiras de julgar, pensar e se comportar”, disse o peruano. Para Llosa, a noção de cultura atual se estendeu tanto, que se esvaiu. Assim, "hoje, todos somos cultos, embora muitos nunca tenham sequer lido um livro ou assistido a um concerto."
A ciência contra a cultura
Mario Vargas Llosa aponta a antropologia, dentre outras áreas, como aquela responsável pela confusão em que a noção de cultura se encontra. Os antropólogos, inspirados pela melhor fé do mundo, numa vontade de compreensão das sociedades mais primitivas que estudavam, estabeleceram que "cultura" era a soma de crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, sistemas de parentescos e usos. Ou seja, tudo aquilo que um povo faz, diz, teme ou adora. “Essa definição buscava, entre outras coisas, sair do etnocentrismo racista daquilo que o Ocidente não se cansa de se acusar. O propósito não podia ser mais generoso, mas sabemos que o inferno está cheio de boas intenções”, ironizou o conferencista. Segundo ele, uma coisa é crer
que todas as culturas merecem consideração, já que, sem dúvida, em todas elas há contribuições positivas à civilização humana. Outra coisa é crer que elas, pelo simples fato de existirem, se equivalem.
A cultura popular
Para o escritor, foi a busca do politicamente correto que terminou por nos convencer de que é arrogante, dogmático, colonialista e até racista falar em culturas inferiores e superiores, modernas e primitivas. Conforme essa crença, todas são iguais -expressões equivalentes da maravilhosa diversidade humana.
Por sua parte, os sociólogos, empenhados em fazer crítica literária, teriamincorporado a "incultura" à ideia de cultura, disfarçada com o nome de "cultura popular". O conferencista lembrou a obra do autor russo Mikhail Bakhtin dedicada à cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Bakhtin via a cultura popular
como um tipo de contraponto à cultura aristocrática, que brota dos salões, conventos, palácios e bibliotecas. A cultura popular nasce e vive na rua, na taberna, na festa, no carnaval, e, mais ainda, satiriza a aristocracia. Bakhtin e seus seguidores aboliram, segundo Vargas Llosa, as fronteiras entre cultura e incultura e deram ao
inculto uma dignidade relevante. “Como falar, então, em um mundo sem cultura numa época em que naves
construídas pelo homem chegaram às estrelas e a percentagem de analfabetos é a mais baixa de todo o acontecer humano?”, questionou o conferencista, chamando a atenção para o fato de que o número de alfabetizados é quantitativo, enquanto a cultura é qualidade, não quantidade. Llosa também advertiu que é atual a capacidade de reunirmos armas de destruição massiva que podem acabar com o planeta, mas que isso está mais próximo da barbárie do que da cultura.
O especialista e a cultura
O especialista foi definido pelo escritor como um ser unidimensional que pode ser, ao mesmo tempo, um grande especialista e um inculto, porque seus conhecimentos, em vez de o conectarem com os outros, isola-o numa especialidade, que é uma cela no domínio do saber. As minorias cultas, conforme Vargas Llosa, tinham a missão de estender pontes entre as áreas do saber e de exercer influência religiosa ou leiga para o progresso intelectual, garantindo melhores oportunidades e condições materiais de vida. “Elliot dizia que não se deve identificar cultura com conhecimento. A cultura dá sustento ao conhecimento e o precede, imprime-lhe uma funcionalidade precisa”, defendeu o Nobel de Literatura.
Artes e letras
No processo da cultura, para ele, seria equivocado atribuir funções idênticas às letras, às ciências e às artes. A ciência avança aniquilando o velho, antiquado e obsoleto. Para ela, o passado é um cemitério, um mundo de coisas mortas e superadas pelas novas descobertas e invenções. As letras e as artes se renovam, mas
não se fundamentam no progresso, não aniquilam seu passado, alimentam-se dele e o alimentam. “Cervantes segue sendo tão atual quanto Borges, Velázquez está tão vivo quanto Picasso”, exemplificou o escritor.
Isso não quer dizer que a literatura, a música e a arte não mudem e evoluam, mas não suprimem nem superam. A obra artística e literária, aquela que alcança certo grau de excelência, não morre com o tempo – segue vivendo e enriquecendo as novas gerações e evoluindo. É por isso que criavam um espaço de comunicação entre seres humanos de diversas gerações. “Letras e artes constituíram o denominador comum
da cultura”, disse o escritor.
Maio de 68 e a autoridade
No campo da cultura, Mario Vargas Llosa confessou preocupação particular com a educação. Atualmente, nas escolas, docentes ou quaisquer outras formas de autoridade parecem ter convertido os colégios em instituições caóticas e com concentração de precoces delinquentes. Para o autor, Maio de 68 não acabou com a autoridade, que já vinha sofrendo um enfraquecimento generalizado em todas as ordens, do político ao cultural. “Os adolescentes provindos das classes burguesas privilegiadas da França, que protagonizaram aquele divertido carnaval, que proclamou ‘É proibido proibir’, estenderam ao conceito de autoridade seu atestado de óbito”, disse o conferencista. Para ele, isso teria dado legitimidade e glamour à ideia de que toda autoridade é suspeita, perniciosa e detestável e que o mais nobre e libertário é desconhecê-la e destruí-la. “O poder não se viu nem um pouco afetado com essa audácia dos jovens rebeldes que, sem saber, levaram às barricadas os ideais iconoclastas de pensadores como Michel Foucault e Jacques Derrida. A autoridade no sentido romano, não de poder, senão de prestígio e crédito, que reconhece a uma pessoa ou instituição por sua qualidade ou competência, não voltou a reviver”, lamentou o escritor, lembrando que são poucas as figuras que exercem esse papel do exemplo moral e, ao mesmo tempo, da autoridade clássica.
Mario Vargas Llosa encerrou sua conferência defendendo que um bom livro nos aproxima da existência humana e de seus mistérios. “Os livros ajudam a viver.
A cultura pode ser experimento de reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia.É uma revisão crítica constante e profunda de todas as certezas, convicções, teorias e crenças”, concluiu o convidado que, após a conferência, respondeu às diversas perguntas da plateia e concedeu uma sessão de autógrafos.
O Prêmio Nobel
As perguntas do público ao Nobel de Literatura abrangeram os mais diversos assuntos do universo de Llosa: livro eletrônico, influências literárias, América Latina e a opinião sobre autores da literatura brasileira e hispano-americana. O bom humor de Vargas Llosa divertiu a plateia que permaneceu até o final, ouvindo-o com atenção. O convidado ainda foi questionado sobre suas obras e personagens – principalmente Ricardo, do livro Travessuras da menina má -, e até sobre o uso que daria ao dinheiro recebido pelo Prêmio Nobel (1,5 milhão de dólares). Ele disse que a decisão sobre o uso do dinheiro cabe à Patrícia, sua esposa, e que espera que ela seja generosa, dando a ele uns "trocadinhos" para investir em livros. Ainda sobre o prêmio, afirmou desconhecer a razão da escolha e que esperava que fosse por sua obra. Contudo, o escritor lembrou que a maioria dos escritores são reconhecidos apenas após a morte. Llosa disse sentir um certo desconforto pelo fato de ele ter merecido o Nobel, enquanto Jorge Luis Borges, um dos maiores escritores da língua espanhola, não ter sido agraciado com o mesmo. “Não me queixo, estou contente de tê-lo recebido, mas espero que tenha sido algo pensado e não um gesto do momento”, brincou o conferencista.
O escritor também explicou o processo criativo que desencadeia um novo livro. Ele sempre parte de uma experiência vivenciada e que, por razões misteriosas, deixa na sua memória imagens que adquirem efervescência e levam a uma primeira redação que sempre lhe é custosa: “Reescrever essa primeira versão é o que me dá maisprazer. Não sou um escritor, e sim um reescritor”, concluiu.
Por Sonia Montaño
para a Unimed Porto Alegre
http://www.unimedpoa.com.br/cooperados/fique-por-dentro/noticias/noticias/293.aspx
http://www.fronteirasdopensamento.com.br/conferencistas