quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sonho: janela de olhar para dentro

Sonhamos – é bom que estejamos sonhando
Seríamos feridos, se despertos
Mas, sendo representação, matam-nos
E, representando, gritamos
Onde o mal? Fora, morrem os homens –
Eis um truísmo de sangue;
Mas nós estamos morrendo em cena
E nunca se acaba o Drama
Com cautela, nos enfrentamos
E os olhos ambos abrimos
Para que o fantasma não perceba o engano
E a surpresa lívida
(...)
É mais prudente sonhar
Emily Dickinson
 
Em 1925, Freud escreveu um artigo chamado “Responsabilidade moral sobre o conteúdo dos sonhos”, e nele faz a si mesmo uma inquietante pergunta: tem o sonhador responsabilidade sobre o conteúdo imoral dos próprios sonhos?
A pergunta não se refere à forma como coisas aparecem nos sonhos: muito antes de Freud escrever sua “Interpretação dos Sonhos”, dando caráter científico ao entendimento dos sonhos pela psicanálise, os sonhos já eram interpretados de diferentes maneiras, o que significa que desde a Antigüidade já existia a percepção de que eles dizem mais do que aparentam. A pergunta de Freud refere-se justamente a este conteúdo que aparece no sonho sob disfarce, que precisa ser interpretado – pelo próprio sonhador – para aparecer.
Alguém poderia dizer: “se precisa de disfarce, boa coisa não deve ser”. De fato, se levarmos em conta os padrões pelos quais nos guiamos em nossa vida diária e “diurna”, os conteúdos “noturnos” dos sonhos podem ser avaliados como “maus”. Dizem respeito aos nossos desejos mais escondidos, nossas fraquezas, nossos temores, aos ódios que não conseguimos expressar, até porque nem sequer nos damos conta de que existem.
No entanto, eles estão ali, e como poderíamos dizer que não são nossos? A resposta de Freud à própria pergunta não deixa dúvida: “Sim.” E ele vai além, constatando o inevitável: “que mais poderíamos fazer com eles?”. A resposta de Freud aponta para uma direção: sim, o “mal” que possa existir em nós não apenas nos pertence, como é de nossa responsabilidade. Responsabilizar-se por ele significa olhá-lo, escutá-lo, prestar atenção a ele – como se fosse uma criança pequena, que precisa de vigilância constante até “criar juízo”. Não podemos terminar de vez com este “desconhecido” em nós, e negá-lo é perigoso: a tal criança arteira, solta, pode fazer grandes estragos contra os outros e contra si mesma. Se, no entanto, recebe atenção e cuidado, pode ficar mais educada e tratável.
O sonho é uma oportunidade, uma janela aberta todas as noites para que possamos olhar para o estranho que mora em nós. A mesmo tempo, sua forma disfarçada permite que nos aproximemos dele aos poucos, à medida que o interpretamos, como se amortecesse o
choque do encontro. Além disso, ele nos mostra claramente que responsabilidade não é culpa. Como já dizia Hans, um pequeno paciente de Freud, na sabedoria de seus cinco anos: “Pensar não é fazer”. Ou, nas também sábias palavras da poeta Emily Dickinson: “É mais prudente sonhar”.

Luciana Maccari Lara
Psicóloga e psicanalista

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