Macabéa demora para ganhar nome na história de Rodrigo M.S. e assim foi também na sua vida. Se ela vingasse até um ano de idade, por promessa a Nossa senhora da Boa Morte (que ironia!), se chamaria Macabéa. Vingou!
Assim é. Quando cada um chega ao mundo, é inserido numa história e numa rede de relações e desejos que o antecede e ao ser nomeado, recebe um pouco dessa história que ainda não lhe pertence mas que já lhe imprime algumas marcas. O nome Macabéa, por exemplo, deriva‐se de Macabeus , que na mitologia, relaciona‐se a resistência.
Mas enquanto a história de Macabéa não vinga, é do ‘fazer literário’ que Rodrigo se ocupa, abordando com maestria o processo de criação e deixando transparecer o entrelaçamento entre narrador, autor e personagem. Rodrigo conta que escreve por força maior, tem sua própria força na solidão, se angustia por não saber o final da história e através da personagem dá seu grito de horror à vida, vida que tanto ama. Um exemplo maravilhoso de sublimação, onde a angústia perante as questões existenciais encontra uma saída na arte. Para Rodrigo, Macabéa é uma verdade da qual ele não queria saber. É um acaso , tem alma rala , é capim seco e não tem aquela coisa delicada chamada encanto. Se se perguntasse ‘quem sou’ cairia estatelada no chão, pois essa pergunta provoca necessidade de pensar e ele não a vê ‘pensante’. Diz que ‘essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa era obrigada a ser feliz então era.’
Ora, se ela pensava que a pessoa era obrigada a ser feliz, não seria porque um desejo de felicidade emerge de dentro de si? Mesmo não sabendo, mesmo não se indagando, Macabéa, como todo mundo, queria experimentar essa coisa estranha chamada felicidade e também como todo mundo, não sabia tudo de si. Ela não tinha recordações boas, registros de alegria ou satisfação, então as inventava. Encontrava assim, uma forma de lidar com a falta.
Viu um dia um homem bonito e queria tê‐lo em casa só para ser visto. O desejo se insinua.. Um dia permitiu‐se faltar ao trabalho e desfrutar do quarto que dividia com as quatro Marias. Ela é datilógrafa e, mesmo que não seja boa datilógrafa, isso lhe ‘dá uma dignidade’. Foi um momento raro de contentamento , algo nunca antes sentido : Explosão! Uma sensação absolutamente nova que não poderia ser nomeada de forma mais bela e simbólica . A vida que pulsa dentro dela pede passagem. Não por acaso, a partir desse momento inaugural a moça nordestina ganha nome na história e encontra um namorado. Quando se apresenta a Olímpico vive um momento de encontro com o olhar do outro e emerge nela algo que está além da luta pela sobrevivência e que tem sua origem no terreno do pulsional.
Quando mais tarde ela perde o namorado e está ameaçada de perder o emprego, tenta evitar o sofrimento procurando viver como se nada tivesse acontecido. É do ser humano tentar evitar o sofrimento, tanto o que ameaça de fora quanto o que vem de dentro de si mesmo e do qual não pode fugir.
Mas coisas diferentes acontecem com Macabéa desde então. Sua colega Glória, movida pela culpa por ter roubado‐lhe o namorado, pôs‐se a olhar e dar atenção para ela . Pergunta se ela pensa no futuro e empresta‐lhe dinheiro para consultar com uma cartomante . Madame Carlota, a cartomante, era um ponto alto na existência de Macabéa já que pela primeira vez ela teria um destino. Nesse encontro ela toma consciência de como sua vida era horrível. Nunca tinha tido coragem de ter esperança mas agora havia nela uma voracidade pelo futuro e isso a atordoava.
Muitas explosões acontecem em Macabéa nesse momento em que sente sua vida mudada e, mudada por palavras. As palavras, associadas a um olhar e atenção nunca antes sentidos , inauguram nela a capacidade de ter esperança. Grávida de futuro, como maravilhosamente descreve Rodrigo, Macabéa dá ao atropelamento que sofre, o sentido de um encontro com seu destino e pensa estar vivendo o primeiro dia de sua nova vida. Nascimento.
Ali, na cidade inconquistável – alusão a difícil vida dos imigrantes que deixam sua terra em busca de um mundo melhor.‐ ganha existência a partir do olhar daqueles que a espiam.
Rodrigo não quer que Macabéa morra, quer o pior para ela : a vida, que ele diz ser um soco no estômago. Ela, no entanto, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. Estava assim anunciado que Macabéa morreu.
A Rádio Relógio, companheira falante que amenizava a solidão de tantas horas, continuaria a marcar o tempo, que não pára, mas que para Macabéa, parou, fazendo lembrar, assim, que todo mundo morre . Todo mundo morre mas a morte não morre.Ela continua existindo e isso mais uma vez remete o homem a sua pequenez, lembrando‐o de que existem fenômenos eternos , mas que ele não é eterno – está marcado pela finitude, pela falta.
A criação, fruto da tentativa de lidar com aquilo que a vida suscita dentro de cada um, parece ser uma maneira de ultrapassar o tempo . Assim ocorreu com Clarice Lispector , que com sua criação , continua a nos inquietar ,provocando um mergulho na subjetividade e convocando‐nos a trabalhar com questões como: origem, sobrevivência, sexo, desejo, amor, sentido da vida, esperança, morte.
Como boa obra de arte, nos coloca diante das voltas que a falta dá e, deixa furos para seguirmos trabalhando e criando.
Janete Rosane Luiz Dócolas* AS VOLTAS QUE A FALTA DÁ
*Psicanalista, Membro do Núcleo de Estudos Sigmund Freud
"E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:- Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?"(Clarice Lispector)
Nenhum comentário:
Postar um comentário