quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Somos feias, mas estamos aqui"



A história de uma rainha, uma das primeiras pessoas assassinadas no Haiti, até os dias de hoje mostra como vivia e vive o povo do país antilhano assolado por um terremoto devastador

Edwidge Danticatð*
"Uma das primeiras pessoas assassinadas em nosso país foi uma rainha. Seu nome era Anacaona e ela era uma índia Arawak. Ela era poeta, dançarina e pintora, também. Ela governava a parte oeste de uma ilha tão exuberante e verde que os Arawaks a chamavam de Ayiti, terra de grandeza.
Quando os espanhóis chegaram pelo mar à procura de ouro, Anacaona foi uma de suas primeiras vítimas. Ela foi estuprada e morta e sua aldeia foi saqueada. A terra de Anacaona é agora frequentemente chamada de o país mais pobre do hemisfério ocidental, um lugar de contínua conturbação política. Assim sendo, para alguns, é fácil esquecer que esta nação foi a primeira república negra, terra dos primeiros afrodescendentes a extirparem a escravidão e a criarem uma nação independente, em 1804.
Eu nasci no Haiti durante o regime ditatorial de Duvalier. Quando eu tinha quatro anos, meus pais deixaram o Haiti à procura de uma vida melhor nos Estados Unidos. Eu tenho que admitir que a motivação deles era mais econômica que política, mas como sabem todos que conhecem o Haiti, economia e política estão intrinsecamente relacionadas; em geral, quem está no poder é quem determina se as pessoas terão ou não o que comer.
Eu hoje tenho trinta e quatro anos e já vou vindo mais de dois terços da minha existência nos Estados Unidos. Minhas memórias mais vivas da infância no Haiti envolvem apagões repentinos, os "blakawouts", como dizíamos.
Durante os blecautes, eu não tinha como ler, estudar, ou assistir televisão, então eu me sentava perto de uma vela ou de uma lamparina e ouvia histórias contadas pelos mais velhos da casa. Minha avó era uma senhora da roça que sempre se sentiu deslocada na capital, onde vivíamos. Ela não possuía nada além de suas colchas de retalhos e suas histórias para se consolar. Foi ela quem me contou sobre Anacaona. Eu dividia um quarto com ela, e eu estava no quarto com ela quando ela faleceu. Ela tinha mais de cem anos. Ela morreu com os olhos arregalados; fui eu quem os fechou.
Ainda tenho saudades das incontáveis histórias que ela nos contava. Entretanto, não foi difícil aceitar sua morte, porque a morte estava sempre por perto. Quando menina, eu vivia indo a funerais. Meu tio e tutor era pastor da igreja Batista e esperava-se que sua família fosse a todos os funerais que ele presidisse. Eu fui a todos os funerais com o mesmo vestido de laço branco. Acho que é por ter ido a tantos funerais que eu tenho um forte sentimento de que a morte não é o fim, e que as pessoas que colocamos debaixo da terra estão indo embora viver em algum outro lugar. Mas ao mesmo tempo eu acredito que elas estarão sempre por perto nos protegendo e nos guiando em nossa jornada.
Quando eu tinha oito anos, o cunhado do meu tio passou uma longa temporada trabalhando nos canaviais da Republica Dominicana. Ele voltou mortalmente adoentado. Lembro-me de sua esposa girando penas por dentro de suas narinas e esfregando pimenta do reino na parte superior de seus lábios para fazê-lo espirrar. Ela acreditava piamente que se ele espirrasse, ele sobreviveria. À noite, eu era eu a encarregada de observar o céu acima da casa em busca de vestígios de estrelas cadentes. Diz a sabedora haitiana rural que quando vemos uma estrela cadente é porque alguém vai morrer. Uma estrela caiu do céu e ele morreu.
Lembro-me de na infância ver Jean-Claude "Baby Doc" Duvalier e sua esposa, Michèle, passarem de Mercedes-Benz atirando dinheiro pela janela para as crianças paupérrimas de nosso bairro. As crianças quase se matavam tentado pegar uma moeda ou ver Baby Doc e Michèle.
Em um Natal, deu no rádio que a Primeira Dama distribuiria brinquedos de graça no palácio. Meus primos e eu fomos para o palácio e fomos quase esmagados na multidão de crianças que inundou os jardins do palácio.
Essas histórias e memórias reavivam umas questões que não me saem da cabeça. Qual é o meu lugar agora nisso tudo? Qual era o lugar de minha avó? Qual é o legado das filhas de Anacaona, das filhas do Haiti?
Ao assistir aos telejornais, é sempre difícil dizer se existem mulheres reais vivas e respirando em lugares detonados por conflitos como o Haiti. Os telejornais da noite só nos fornecem notícias breves sobre golpes presidenciais, imigrantes rejeitados, e sabotagens em eleições.
As histórias das mulheres nunca conseguem chegar às primeiras páginas. Mas elas existem, sim. Ao longo dos anos, eu conheci mulheres que, quando os soldados chegavam a suas casas no Haiti, diziam aos filhos para ficarem deitados paralisados e se fazerem de mortos.
Eu conheci uma mulher cuja irmã grávida foi baleada no estômago porque estava vestindo uma camiseta com uma "imagem antimilitar". Eu conheço uma mãe que foi presa e espancada por trabalhar com um grupo pró-democracia. O corpo dela é marcado pelas cicatrizes deixadas pelos cigarros enterrados pelos soldados em sua carne. À noite, essa mulher ainda sente o cheiro das cinzas das guimbas de cigarros que eram enfiadas, acesas, em suas narinas. Na mesma cela, essa mulher viu adidos paramilitares estuprarem sua filha de quatorze anos sob a mira de uma arma. /
Quando mãe e filha entraram em uma pequena embarcação rumo aos Estados Unidos, a mãe nem desconfiava que a filha estava grávida. Muito menos sabia que sua criança tinha sido infectada pelo vírus HIV contraído de um dos paramilitares que a estupraram. O fruto desse estupro, sua neta, recebeu o nome de Anacaona, como a rainha Arawak, porque essa família de mulheres é de Léogane, a mesma região em que Anacaona foi assassinada, a mesma região em que minha avó nasceu.
A pequena Anacaona possui um rosto que não traz mais qualquer traço de sangue indígena, mas sua história ecoa alguns dos primeiros sanguinários incidentes em uma terra que os tem assistido excessivamente.
Tem um ditado haitiano que talvez não agrade à sensibilidade estética de algumas mulheres. “Nou lèd, nou La”, que quer dizer “Somos feias, mas estamos aqui”.
Assim como a modéstia característica da cultura rural haitiana, esse ditado é mais caro às mulheres pobres haitianas do que a manutenção da beleza, seja ela superficial ou não.
Para mulheres como minha avó, o que vale à pena ser celebrado é o fato de que estamos aqui, que apesar de todas as adversidades, nós existimos. Para mulheres como minha avó, que cumprimentavam umas às outras com este ditado quando se cruzavam ao longo de um caminho de terra lá na roça, a essência da vida está na sobrevivência.
É sempre bom lembrar às nossas irmãs que sobrevivemos a mais um dia para atender ao chamado de uma vida muitas vezes dolorosa e muito difícil. É neste espírito que até hoje uma mulher lembra-se de dar à sua filha o nome de Anacaona, um nome que ressoa tanto o esplendor quanto a agonia de um passado que assombra a tantas mulheres, e homens, hoje.
Quando foram escravizadas, nossas antepassadas acreditavam que quando morressem seus espíritos retornariam à África. Mais especificamente, retornariam para uma terra pacífica, a qual chamamos de Ginen, habitada por deuses e deusas.
As mulheres que vieram antes de mim eram mulheres que falavam metade de uma língua e metade de outra. Elas falavam o francês e o espanhol de seus colonizadores misturados às suas próprias línguas africanas. Essas mulheres pareciam estar falando em línguas estranhas quando rezavam para seus velhos deuses, os antigos espíritos africanos. Apesar de temerem não serem mais entendidas por suas antigas divindades, elas inventaram uma nova língua para descrever o local que passaram a habitar, uma língua da qual brotaram frases coloridas para atender a circunstâncias desesperadoras. Quando essas mulheres se cumprimentavam, elas se descobriam falando em códigos. -- Como vai você hoje, irmã? -- Eu sou feia, mas eu estou aqui.
Hoje em dia, muitas das minhas irmãs se cumprimentam bem distante das terras onde aprenderam a falar em línguas estranhas. Muitas conseguiram chegar a outras partes, depois de viajarem milhas sem fim em alto mar, em precárias embarcações que quase lhes tiraram a vida.
Em 29 de outubro de 2002, uma mulher, debilitada pela longa jornada no oceano, ao avistar terra firme teria se atirado na maré baixa. Outras pessoas a seguiram, inclusive meninas e meninos pequenos que preferiram correr o risco de quebrarem um braço ou uma perna a se separarem de seus pais. Estes são apenas alguns dos milhares que chegam às costas estadunidenses ao longo do ano, apenas para serem cercados, algemados, levados presos, e quase sempre devolvidos para o lugar de onde vieram.
Há onze anos uma mulher pulou no mar quando descobriu que sua bebezinha tinha morrido em seus braços em uma jornada que ela tinha esperanças que as levasse de encontro a um futuro melhor. Mãe e filha, foram para o fundo de um oceano que já contém milhões de almas da “middle passage”, o holocausto do comércio de escravos. O sacrifício da mulher levou muitos de nós às lágrimas, mesmo que o acontecido nos fizesse lembrar de um monte de sacrifícios outros, feitos no passado, em nome de todos nós, para que pudéssemos estar aqui.
O passado está repleto de exemplos de nossas antepassadas mostrando tão profunda confiança no mar a ponto de saltarem de navios negreiros e se deixarem acolher pelas ondas. Elas acreditavam ser o mar o princípio e o fim de todas as coisas, o caminho para a liberdade e a passagem para o Ginen.
Essas mulheres, mulheres como minha avó que me ensinou a história de Anacaona, a rainha, têm sido parte da construção do meu próprio ser desde que eu era uma menininha.
Minha avó acreditava que se uma vida é perdida, uma outra vida brota em algum outro lugar, sendo essa nova vida ainda mais forte que a outra. Ela acreditava que uma pessoa não morre, realmente, desde que alguém se lembre dela, alguém que reconheça que esta pessoa, apesar de tudo, estava aqui.
Nós somos parte de um círculo sem fim, somo as filhas de Anacaona. Nós envergamos, mas não quebramos. Não somos atraentes, mas ainda assim resistimos. De vez em quando devemos gritar isso o mais distante que o vento puder levar nossas vozes. “Nou lèd, nou la!” Somos feias, mas estamos aqui. E aqui para ficar.

(*) Título original: “We Are Ugly, But We Are Here”, extraído da coletânea Women Writing Resistance: Essays on Latin America and the Caribbean (Cambridge, MA: South End Press, 2003, 23-27.

Agradeço ao Gerson Luis Barreto de Oliveira que me enviou esse texto por e-mail.

3 comentários:

  1. A vida deste povo sofrido é um grito de alerta para a humanidade.

    O seu blog é um excelente meio de informação e divulgação cultural, sigo acompanhando, abraço.
    Gerson Oliveira

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  2. Adorei saber um pouco mais sobre o povo do Haiti, aproveitei e fiz um link para meu blog sobre este texto.
    Sua página está cada dia mais completa e interessante. PARABÉNS

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  3. achei lindo o texto...
    as invasões são sempre terríveis.Resta fugir, mas
    escapar e perder a identidade também deve ser horrível. adorei conhecer essa história

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